Papa Francisco: A guerra subterrânea entre conservadores e progressistas na Igreja Católica
Ser papa em tempos de intensa polarização e onipresença digital exige mais do que profundos conhecimentos teológicos, carisma pastoral e fé. Francisco, o 266.º sumo pontífice na longa tradição da Igreja Católica, veste a carapuça do político quase com tanta frequência como usa a batina.
E essa habilidade, embora tenha atingido proporções globais nos últimos anos, não é nova.
“Quando arcebispo de Buenos Aires, recordo que [Jorge] Bergoglio [seu nome antes de se tornar papa] enfrentava a oposição de alguns bispos mais conservadores, como o monsenhor [Héctor] Aguer [que, quando arcebispo de La Plata, era considerado o maior antagonista de Bergoglio no episcopado argentino]”, afirma à BBC News Brasil o jornalista e escritor argentino Luis Rosales, biógrafo do papa e autor do livro Francisco: El Argentino Que Puede Cambiar El Mundo (“Francisco: o argentino que pode mudar o mundo”, em tradução livre).
“Ele lidava com isso da mesma forma como tudo se lida na Igreja: com sórdidas relações de equilíbrio, algumas vezes há ofensas, em outras há a convivência um tanto hipócrita”, comenta o biógrafo.
Nos últimos meses, Francisco mexeu algumas peças no tabuleiro e, ao que parece, vem preferindo fazer valer o seu poder, em vez de seguir na “convivência um tanto hipócrita”.
Em 11 de novembro, ele demitiu do posto o então bispo de Tyler, no Texas, Joseph Strickland.
Duas semanas depois, veio à público outra decisão do papa no sentido de punir um opositor, também do clero americano: em uma decisão sem precedentes, Francisco decidiu despejar o cardeal Raymond Burke de seu apartamento funcional no Vaticano e cortar seu salário.
Burke é um dos maiores críticos do papa, sendo considerado um dos líderes da oposição na cúpula da Igreja. Strickland costuma se posicionar contra as pautas de Francisco, sobretudo quanto ao acolhimento de homossexuais e outras questões morais.
Francisco vem ainda reduzindo os poderes do grupo católico conservador Opus Dei, organização presente em mais de 60 países.
Antes considerada uma intocável prelazia pessoal do papa, a instituição é mantida na rédea curta por Francisco.
No ano passado, o Vaticano diminuiu o poder e a independência do grupo, obrigando-o a reportar-se ao Dicastério para o Clero, com submissão anual de relatórios.
Em agosto de 2023, mais um golpe contra o Opus: em decreto, Francisco extinguiu os privilégios de uma prelazia — e a única que vigorava era esta —, relegando a organização à categoria de associação clerical pública.
Parece apenas uma questão burocrática, mas não é.
Como prelazia pessoal do papa, criada há 40 anos — assim oficializada em 1982 por João Paulo 2º (1920-2005) —, ela não estava sob a jurisdição de nenhum bispo, uma condição única dentro dos organismos canônicos.
Mais recentemente, em decisão histórica, Francisco autorizou bençãos a casais homossexuais.
Professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e vice-diretor do Lay Centre, também em Roma, o vaticanista Filipe Domingues entende que Francisco sempre soube receber as críticas, mas agora “vem agindo com uma mão mais dura onde enxerga que está existindo divisão”.
“Foi o mesmo com a missa antiga: ele começou a ver que aqueles que celebram a missa antiga não estavam indo mais na missa por causa dela. Muitos estavam indo porque virou um grupo, quase que uma seita dentro da Igreja. E eles estavam articulando de forma ideológica”, compara Domingues, citando o caso do rito tridentino, em entrevista à BBC News Brasil.
As celebrações no rito antigo, em latim e com o padre de costas para os fiéis, eram norma na Igreja do século 16 até o concílio Vaticano 2º — realizado entre 1962 e 1963.
Nas últimas décadas, seguiu sendo permitida, mas apenas em contextos específicos.
Em 2021, Francisco entendeu que muitos dos que diziam “preferir” este rito em detrimento do contemporâneo estavam, na verdade, instrumentalizando a liturgia, em um processo de negacionismo dos tempos atuais e, em última instância, da própria condição do argentino como papa.
Então, decidiu praticamente proibir esse tipo de missa.
“Ele fez isso, agiu de forma mais dura, com os dois casos americanos, Burke e Strickland”, pontua o vaticanista.
Já quanto ao Opus Dei, ele vê diferenças.
“O grupo é muito fiel ao papa Francisco. Cito sempre o Opus Dei como exemplo de que a questão chave não é ser conservador, mas sim ser ideologizado e instrumentalizado como contrário ao sucessor de Pedro dentro da Igreja.”
Pela tradição católica, Pedro, um dos 12 apóstolos, é considerado o primeiro papa da história. E todos os que vieram depois passariam a integrar uma linha sucessória sagrada.
“O Opus Dei, como instituição, não faz isso. Pode até ter nela indivíduos um pouco mais radicais, um pouco mais críticos. Mas o Opus não é um movimento de resistência ao papa Francisco. Eles têm hesitações e questões, como todo mundo, quanto a algumas posições do papa, mas não são um movimento de resistência”, explica.
Para o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN, condutas do tipo colocam em xeque a própria ideia de abertura proposta pelo pontífice.
“Eu não sei qual é o projeto do papa Francisco para a Igreja. Há uma visão, mas não um plano específico, nem algo que se assemelhe a um plano”, critica.
“Fala-se muito dessa ideia de abertura sinodal do papa na Igreja, mas depois é o próprio papa quem não aplica a sinodalidade, utilizando suas prerrogativas de soberano absoluto até o fim.”
“Há como uma contradição fundamental, a ideia de um rei que impõe a liberdade sem praticá-la”.
Preocupações sociais e ambientais
Para especialistas, as questões de fundo moral que são utilizadas para criticar Francisco podem ser só “cortina de fumaça” para que não se enxergue aquilo que realmente incomoda parte do status quo: as preocupações sociais e ambientais do argentino.
“Ele enfrenta uma resistência mais ou menos desde o começo do pontificado e, principalmente, depois da Laudato Si’, a encíclica sobre questões econômicas e ambientais que teve uma grande repercussão no ambiente diplomático, boa recepção no mundo da ciência e influenciou o Acordo de Paris (tratado internacional sobre mudanças climáticas, adotado em 2015)”, contextualiza Domingues.
“Algumas pessoas dentro da Igreja acharam que não era posição do papa falar dessas coisas.”
Antes, como lembra o vaticanista, ele já havia publicado um texto em que afirmava que “essa economia mata”.
“Os críticos começaram a dizer que o papel dele não era esse, que ele deveria se concentrar mais nas questões pastorais”, prossegue.
Desta forma, segundo o especialista, o problema não é teológico, mas social.
“Os resistentes, em geral mais conservadores, não criticam a teologia de Francisco, mas a crítica social que ele faz. Isso, em contextos polarizados como o Brasil, os Estados Unidos e parte da Europa, onde há movimentos de extrema-direita na sociedade, se reflete também na Igreja”, acrescenta.
Para Domingues, isso faz com que toda questão de ordem moral abordada por Francisco seja posta em descrédito por esse grupo barulhento.
“A função é desqualificar a autoridade moral do papa para que tudo aquilo que ele diga perca valor”, explica. “Para que as pessoas não o ouçam.”
Nesse sentido, ele entende que a atenção acaba desviada dos temas que realmente seriam mais caros a Francisco, “a crítica à política econômica, ao nacionalismo, à religião desencarnada [alheia aos problemas do mundo]”.
A tática desses grupos conservadores consiste em rotulá-lo de forma a desqualificar sua autoridade perante a parte da sociedade.
“Chamam-no de comunista e várias outras coisas. Dizem que ele está cometendo heresias. Aos poucos, isso passou a ser ideologizado. O antes era uma crítica orientada por discordâncias políticas, agora é uma questão mais ampla, havendo pessoas, inclusive entre os bispos, que começam a pôr resistência a qualquer coisa que venha de Francisco”, argumenta.
“Os mais radicais são os sede-vacantistas, ou seja, aqueles que não o aceitam como papa, baseados em algumas teorias da conspiração de que [seu antecessor] Bento 16 [(1927-2022)] teria renunciado à força.”
Para o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o azar de Francisco foi seu pontificado “acabar coincidindo com essa onda conservadora e reacionária que assola o mundo, presente na política secular e na política eclesiástica”.
“É uma situação muito presente na realidade política e me parece que isso também invade de maneira muito forte a temática religiosa. O que há em comum entre os grupos reacionários é a questão da sexualidade”, destaca ele à BBC News Brasil, aludindo às pautas morais presentes nas discussões da Igreja.
“No caso do cardeal americano [Burke], a gente percebe que as críticas começam exatamente por dizer que Francisco está, de alguma maneira, desrespeitando a tradição, indo longe demais, principalmente nas questões sexuais”, acrescenta.
Em sua visão, o papa está “dialogando com temas pertinentes ao nosso momento histórico” ao tratar do acolhimento a homossexuais, por exemplo.
Mas o teólogo entende que se “a cosmovisão de Francisco incomoda” esses grupos ultraconservadores, “que acreditam que ele está se posicionando de maneira heterodoxa”, o pano de fundo são as questões socioeconômicas abordadas por ele.
“Francisco tem plena convicção de que suas ações são ações que representam o Cristo, esse tipo de opção pelos oprimidos, pelos pobres, pelos excluídos. E os ultraconservadores acham que isso é um discurso demagógico, populista. Por isso as divisões e as oposições”, acrescenta.
“Eles são fundamentalistas”, define Moraes.
Para o teólogo, a “visão progressista” do papa Francisco incomoda esse grupo “porque ele quer colocar a Igreja Católica, de fato, no século 21”, fazendo-a “relevante ao debate ambiental, à luta pela qualidade de vida, à luta contra a exploração desenfreada pelo modo de produção capitalista”, entre outras questões.
Incomodadas, essas pessoas acabam “se unindo”.
“E chama muito a atenção o fato de que esses grupos geralmente começam as críticas nas questões morais. Francisco estaria, segundo eles, levando a Igreja para um caminho muito perigoso, ele estaria indo longe demais”, acrescenta.
Mais pragmático que ideológico
“[Quando arcebispo de Buenos Aires,] ele não era classificado como um bispo demasiado progressista”, recorda o biógrafo Rosales.
E talvez nem hoje ele se veja assim. Sua postura pode ser, na verdade, mais pragmática do que ideológica, no sentido de que ele busca fazer as transformações que acredita compatíveis com a mensagem do cristianismo, não se importando se esses atos são vistos como “de esquerda”.
“Em geral, na Igreja, sempre houve diferentes posturas, diferentes grupos”, comenta Rosales.
“Hoje há uma divisão bem forte entre conservadores e progressistas e Bergoglio flutua um pouco, tem tentando manter certo equilíbrio.”
“Às vezes os progressistas os veem como muito pouco progressistas. E os conservadores, como muito pouco conservador”, argumenta.
Segundo o biógrafo, o golpe de mestre de Francisco no sentido de apaziguar ânimos das duas frentes foi a canonização conjunta, em 2014, dos papas João 23 e João Paulo 2º.
O primeiro, por conta da ideia do Concílio Vaticano 2º, é “venerado pelos setores mais progressistas”; “o polaco, muito mais pelos setores mais conservadores, por sua contribuição [entre outras questões] na guerra ao comunismo”.
“Ele canonizou os dois em conjunto e conseguiu reunir milhares e milhares de fiéis dos dois lados, dos dois grupos da Igreja. É um bom exemplo da ideia de Bergoglio de tentar compatibilizar ambos os mundos”, aponta Rosales.
Redes sociais
Mas a oposição a Francisco é maior do que a enfrentada por outros papas? Não necessariamente.
O que ocorre é que nunca antes da história da humanidade um líder esteve tão exposto como nesta época de comunicação instantânea e redes sociais — além de haters e polarização, é claro.
A isto tudo, se soma o carisma do argentino, um homem que costuma se expressar com espontaneidade e, não raras vezes, de modo autêntico.
“Não considero correto afirmar que há muitos opositores ao pontificado de Francisco”, analisa Gagliarducci.
“É mais apropriado dizer que se trata de um fenômeno mais visível, mais vivo e mais presente. A personalidade do papa não ajuda nesse sentido. Ele é um papa que toma decisões, polarizador por natureza.”
Moraes lembra que “tradicionalmente, todas as organizações sociais, sejam elas declaradamente políticas, sem nenhuma aura sobrenatural, ou seja uma organização política dedicada ao sagrado”, todas são feitas de segmentos, de facções.
“Não acho que o papa tenha mais oposição do que os do passado. Só acho que a gente vive numa realidade muito mais midiática, então essas coisas se espalham, se difundem de forma muito mais rápida”, afirma Domingues.
“As redes sociais são um canal forte, essa é a realidade que a gente vê. E não é uma questão da Igreja: é uma questão social do mundo hoje, de polarização, de instrumentalização das redes sociais.”
Para o especialista, contudo, a oposição a Francisco não será capaz de fazer um sucessor antagônico a ele, em um eventual conclave.
“Ele teve habilidade política muito grande na recomposição do colégio de cardeais, cercando-se de pessoas com uma visão mais progressista da realidade”, diz Moraes.
Pelas regras da Igreja, um papa é escolhido após a morte ou renúncia do titular em um processo de votação em que cardeais de todas as partes do mundo são os eleitores.
“Francisco sabe que a reorganização interna da igreja que ele fez, na verdade, significa plantar o futuro, significa que ele está olhando para a frente, para que sua obra continue pela mão de alguém que pense como ele, e não de alguém que pense como os reacionários”, acredita o teólogo.
Amigos para postos de confiança
Mas se Francisco está buscando resolver os atritos afastando os opositores, isto não é feito de forma descuidada.
“Ele afasta dos cargos, mas não de forma humilhante”, avalia Domingues.
“O cardeal Burke, por exemplo, primeiro foi retirado de algumas funções e, talvez por outros motivos também. Mas manteve cargos. Ele foi sendo gradualmente retirado, sabendo que havia uma resistência.”
Um processo de fritura semelhante ocorreu com o cardeal alemão Gerhard Müller, que havia sido nomeado para a Congregação para a Doutrina da Fé pelo antecessor de Francisco, Bento 16.
Quando o argentino assumiu, manteve-o no cargo. “Ele tentou, não só manteve como ainda fez dele cardeal [em 2014]. Mas aí o Müller começou a bater cabeça com o papa, começou a dizer o contrário do que o papa dizia, forçar a mão… Não teve jeito: ele foi afastado”.
Não aconteceu da noite para o dia, contudo. Müller acabou destituído apenas em 2017, sem muito alarde, quando para seu lugar foi nomeado o jesuíta espanhol Luis Ladaria.
Domingues vislumbra que a fase atual do pontificado de Francisco seja o momento desses acertos acontecerem.
“Porque entramos numa fase de consolidação, provavelmente uma fase final. E, como vimos no caso do Burke, Francisco tentou dialogar, apresentar [pontos de vista] e tal. Eles não só continuam atacando, criticando, como elevaram o tom”, assinala.
Francisco também tem nomeado argentinos de sua confiança para postos-chave no Vaticano.
É o caso da própria Doutrina da Fé, que desde julho é comandada por Victor Fernández, amigo pessoal e ghost writer de Francisco.
“O problema do papa não é a crítica, é a forma como ela vem. Eles começaram a forçar, a envolver outras pessoas, a agir de um jeito mais agressivo. E aí Francisco começou a responder de uma forma mais agressiva também”, acrescenta.
Observadores do Vaticano também acreditam que a morte de Bento 16, em 31 de dezembro do ano passado, acabou dando mais autonomia a Francisco na hora de nomear para cargos e destituir pessoas de seus cargos.
Não que ele não tivesse esse poder — mas a sombra do papa emérito acabava sendo um polo de atração para diversos religiosos mais conservadores que são considerados oposição a Francisco.